O Pai do Método Científico: A Vida e a obra de Ibn al-Haytham (Alhazém)
Autor: Lucas de Oliveira Ralla 22/06/2022“Eles falam de Alhazen, Vitello
e Aristóteles, que escreveram suas vidas,
em estranhos espelhos e instrumentos ópticos.”
- Geoffrey Chaucher, The Canterbury Tales
Dentre o rol de grandes inventores muçulmanos – que não são poucos– há um que é digno de nota especial: o iraquiano Ḥasan ibn al-Haytham. Como polímata, suas contribuições não são confinadas à apenas uma matéria, mas vão desde a Astronomia até, especialmente, a óptica, dado o fato de suas pioneiras descobertas sobre o tema, sendo chamado de “o segundo Ptolomeu” e “o primeiro verdadeiro cientista”, uma vez que foi um dos primeiros a usar um método científico de fato. Também escreveu sobre teologia e filosofia.
Nascido em Basra no ano de 965 da Era Comum (354 da Hégira), Ibn al-Haytham, conhecido no Ocidente pelo cognome Alhazen teve uma vida religiosa e comunitária ativa, decidindo, no entanto, dedicar-se ao estudo das ciências naturais em pretérito das sobrenaturais. Após ganhar nota com cargos públicos em sua terra natal, o Califa Fatimída Al-Hakim ‘bi Amr’-Allah (o conhecido fundador da religião Druza) para projetos de regulação do Rio Nilo. Ibn al-Haytham residiria lá, no Egito, mais especificamente no Cairo até sua morte em 1040 da Era Comum (430 da Hégira) aos 75 anos. É dito que Al-Hakim o chamou para arquitetar uma obra que regulasse as cheias do Rio Nilo. Uma vez no Egito, ele fez planos para a construção de uma represa no exato lugar onde hoje é a Represa de Aswan; na hora do trabalho de campo, porém, as dificuldades o convenceram da real impraticidade do projeto, que abandonou. Ibn al-Haytham, por sua vez, para escapar da punição do errático e instável Califa Fatimída, fez o bom e velho truque de fingir demência; o mais irônico é que o Califa era, de fato, meio louco (quer saber mais sobre? Leia: Deu a louca no Califa: O reinado de al-Hakim).
De acordo com fontes medievais, ele escreveu surpreendentes mais de 200 obras sobre uma ampla gama de assuntos. A maioria de suas obras está perdida, mas mais de 50 delas sobreviveram até certo ponto (algumas em fragmentos). Quase metade de seus trabalhos sobreviventes são sobre matemática, 23 deles sobre astronomia e 14 sobre óptica, com alguns sobre outros assuntos, mas nem todas elas foram ainda estudadas pela Academia.
Dentre uma das mais notáveis contribuições, estão aquelas situadas no campo da óptica, sendo al-Haytham o primeiro cientista a notar tanto que a visão ocorre quando o reflexo da luz reflete de um objeto até passar pelos olhos do observador quanto que o reconhecimento da imagem não ocorre nos olhos, mas no cérebro. Essas e muitas outras ponderações sobre a óptica estão presentes, notadamente, em sua magnum opus “Livro da Óptica” (Kitab al-Manazir) traduzida para o latim (onde lhe foi dada a alcunha de al-Haytham pelo tradutor europeu) sob o nome De Aspectibus. Suas formulações eram uma mistura das ideias de Ptolomeu, Galieno e Aristóteles, chegando à conclusão de que este último (Aristóteles) era o mais correto de todos quanto à sua teoria sobre a visão, que há séculos disputava com a de Ptolomeu. O Livro de Óptica descreve várias observações experimentais que al-Haytham fez e como ele usou seus resultados para explicar certos fenômenos ópticos usando analogias mecânicas.
Capa do livro Opticae Thesaurus, onde consta a primeira versão impressa de De Aspectibus
“A tarefa do homem que investiga os escritos de homens de ciências, caso aprender a verdade seja seu objetivo, é então fazer de si mesmo inimigo de tudo que lê, e... atacá-lo por todos os lados. Ele também deveria suspeitar de si mesmo enquanto opera seu exame crítico disto [da matéria em questão], para que ele evite cair ou no prejuízo ou na leniência.”
- Al-Haytham
A partir deste excerto do polímata, fica claro o motivo de já haver ter sido chamado de “o pai do método cietífico”: o comportamente aqui esperado de um homem de ciência, que também pode ser tranquilamente traduzido como cientista, é aquele que hoje é esperado de qualquer acadêmico sério, seja ele da área das ciências naturais ou humanas, utilizando-se do método experimental de dúvidas e combinações (já foi visto mais acima que al-Haytham se utiliza destas combinações experimentais de diferentes áreas e autores para chegar a uma conclusão.
Muitas vezes as descobertas de Ibn al-Haytham se beneficiaram da interseção de contribuições matemáticas e experimentais. O chamado “Problema de Alhazen”, primeiramente apresentado por Ptolomeu, é um problema matemático e geométrico quensiste em traçar linhas de dois pontos no plano de um círculo que se encontram em um ponto da circunferência e fazem ângulos iguais com a normal nesse ponto. O problema foi solucionado por Alhazen através da óptica, através da utilização de seções cônicas e uma prova geométrica. O problema também mais tarde solucionado, também, por matemáticos como Peter Neumann e Harald Riede.
O psicólogo sudanês Omar Khaleefa pontua que al-Khaytham deveria ser também colocado como o fundador da psicologia experimental por seu pioneirismo na área da psicologia da percepção visual e das ilusões de ótica. Isso está intimamente ligado com outro de seus grandes experimentos: a única camera obscura que temos descrição fora da China, á epoca. Uma camera obscura câmara ou quarto completamente ausente de luz, à exceção de um pequeno buraco por onde a luz projeta uma forma ou imagem numa parede ou mesa do outro lado da sala. A camera obscura de al-Haytham era utilizada por ele para observar eclipses. É o caso de Da forma do eclipse. Além do fato de que este tratado permitiu que mais pessoas estudassem os eclipses parciais do sol, permitiu especialmente entender melhor como funciona a câmera escura. Este tratado é um estudo físico-matemático da formação da imagem no interior da câmara escura. Ela foi fundamental para seus experimentos que, além do Livro da Óptica, possibilitou a escrita de vários outros tratados assuntos interseccionais, incluindo seu Risala fi l-Daw' (“Tratado sobre a Luz”). Ele investigou as propriedades da luminosidade, arco-íris, eclipses, do crepúsculo e do luar.
Ilustração do funcionamento de uma câmara obscura
Alhazen escreveu uma obra sobre teologia islâmica na qual discutiu a profecia e desenvolveu um sistema de critérios filosóficos para discernir seus falsos pretendentes em seu tempo numa espécie de computador caça-hereges de dar inveja em Tomás de Torquemada e Jímenez de Cisneros. Ele também escreveu um tratado intitulado Encontrando a Direção da Qibla por Cálculo no qual discute como encontrar a Qibla de oração seguindo padrões e coordenadas matemáticas. No mesmo ramo matemático, al-Haytham explorou e deu continuidade a muitos problemas matemáticos. Um exemplo é a seção da numerologia, com seu trabalho sobre números perfeitos. Em sua Análise e Síntese, ele pode ter sido o primeiro a afirmar que todo número perfeito par é da forma 2n−1(2n−1) onde 2n−1 é primo, mas ele não conseguiu provar esse resultado; Euler mais tarde provou isso no século 18, e agora é chamado de teorema de Euclides-Euler.
Bibliografia:
- Gorini, Rosanna - "Al-Haytham the man of experience. First steps in the science of vision” - (2003).
- Lorch, Richard - Ibn al-Haytham: Arab astronomer and mathematician. Encyclopedia Britannica (2017).
- "International Year of Light: Ibn al Haytham, pioneer of modern optics celebrated at UNESCO". UNESCO (2018).
- Al-Khalili, Jim – "The 'first true scientist”. BBC News (2009).